quinta-feira, 4 de junho de 2015

Para ciclistas: pedalar puxando o pedal para melhorar a pedalada é mito ou verdade?

   Quem gosta de pedalar, como eu, e utiliza os chamados clipes de pedal sabe as vantagens de se pedalar com este acessório. O clipe de pedal é um acessório que fixa os pedais da bicicleta na sapatilha do ciclista através de um taco de metal e um grampo. Este grampo permite que o ciclista fique literalmente grudado na bicicleta e, dessa forma, ambos se comportam como um só. Além da estabilidade, o ciclista pode utilizar uma técnica de pedalar puxando o pedal, além de empurrando, o que confere mais potência no pedal.
   Recentemente, recebi de um amigo uma postagem de um blog que dizia acabar com o mito da pedalada puxada, dizendo que "a ciência mostra que a puxada na pedalada é irrelevante para a geração de força". O blog é recheado de informações pseudo-científicas: traz um vídeo de um especialista e cita o Dr. Jeff Broker. Em uma busca por artigos do Dr. Brokes nas principais bases de dados de artigos científicos do mundo, o PubMed e o Web of Science, não encontrei este trabalho e o trabalho mais recente do Dr. Brokes sobre o assunto data de 2001 e não menciona o uso de clipes de pedal.
   De qualquer forma, existe muita literatura mais recente sobre o assunto. Então resolvi fazer um levantamento verdadeiramente científico sobre o tema: pedalar puxando o pedal para melhorar a pedalada é mito ou verdade?
   Antes de iniciar, temos que esclarecer alguns parâmetros para melhor compreensão:
   EP (Efetividade da força): força entregue aos pedais durante a pedalas. Quanto maior a Efetividade, mais forte e eficiente é a pedalada;
   EB (Eficiência bruta): EP corrigida pela quantidade de energia gasta pelo ciclista. Quando maior a Eficiência, menos energia o ciclista gasta para manter aquela potência de pedal;
   Regularidade de Distribuição do Torque: distribuição de força entregue aos pedais durante o ciclo da pedalada. É uma medida da variação da força exercida nos pedais conforme se gira. Quanto maior a força em uma só direção - para baixo - por exemplo, menor a Regularidade.
   A principal limitação dos trabalhos sobre o tema está no uso de sistemas ergométricos com potência e cadência de pedal constantes, o que simula bem a realidade de bicicletas de estrada (speed) mas não a de Mountain Bike, onde o posicionamento do ciclista e a potência e cadência de pedal mudam a todo o momento. Dois trabalhos clássicos apresentam as figuras representadas abaixo:




   As Figuras mostram a força (Torque) da pedalada em função do ângulo do pedal. A 90o, com os pedais na horizontal, a força é máxima (para baixo), chegando perto de zero a 180o, com os pedais na vertical, a força é próxima de zero e chega ao valor mínimo a 270o, com os pedais na horizontal novamente.
   A Figura superior (MORNIEUX et al., 2008) mostra o perfil de dois grupos: Ciclistas de elite e Não-ciclistas, utilizando três condições: pedais comuns de plataforma, pedais com clipes (Clipless - erroneamente traduzidos para o português) e pedais forçando a pedalada puxada (Clipless Feedback).
   A Figura inferior (KORFF et al., 2007) mostra o mesmo gráfico com ciclistas de elite orientados a pedalar com sua técnica preferida (Preferred), forçando a pedalada circular (Circuling), forçando a puxada (Pulling) ou somente empurrando (Pushing).
   Pelos dois gráfico, percebe-se que a força diminui quando se puxa o pedal, tanto em 90o quanto em 270o. Como estes experimentos são feitos com a potência de pedalada constante (200 wattz e 90 rpm), isso significa que os ciclistas fazem menos força para manter o mesmo giro e a mesma potência entregue aos pedais.
   Como resultado, a Efetividade da força e a Regularidade do Torque são maiores quando a pedala inclui a puxada, conforme demonstrado na Figura abaixo (KORFF et al., 2007):

   A figura mostra que existe um aumento significativo da Efetividade da força (B) e a Regularidade do Torque (A) com a utilização da puxada (Pulling) na pedalada em relação a todas as outras formas de pedalar, inclusive àquelas preferidas dos ciclistas. Monieux e colaboradores (2010) mostra resultados semelhantes. Na Figura abaixo, a Efetividade é mostrada em função dos quatro quartos de volta da pedalada, mostrando que o aumento é observado tanto nos primeiros 90o, quanto entre 180o e 360o:
   A desvantagem observada na pedalada puxada se encontra na Eficiência bruta da pedalada, ou seja, na relação entre a Efetividade da força e o Gasto metabólico, a energia gasta pelo ciclista durante a pedalada. O gasto metabólico pode ser calculado pelo volume de oxigênio utilizado e de gás carbônico produzido durante a pedalada. Estes resultados podem ser vistos na Tabela abaixo (MORNIEUX et al., 2008):


      A Tabela mostra, no quadro vermelho, que a Efetividade da força (IE) é maior na pedalada puxada (Clipless feedback) do que as outras técnicas em todos os quadrantes do giro dos pedais (360, DOWN e UP). No entanto, a Efetividade Bruta (NE), no quadro amarelo, é menor na pedalada puxada do que nas outras técnicas. O mesmo resultado pode ser observado por Korff e colaboradores (2007) na Figura abaixo, onde a pedalada puxada (Pulling) mostra menor Eficiência que todas as outras técnicas:

    Em suma, apesar da pedalada puxada adicionar potência ao pedal, o gasto energético do ciclista é maior, tornando a pedalada menos eficiente a longo prazo. Mas porquê esse gasto energético extra? A resposta está no grupo de músculos utilizados para empurrar e puxar os pedais. A força que fazemos para empurrar os pedais vem, principalmente de três músculos: Gastrocnêmico, Vasto medial (Quadríceps) e Glúteo Maximus, mostrado respectivamente na Figura abaixo:
Enquanto que os músculos utilizados para puxar os pedais são, principalmente, Tibial anterior e Bíceps femural, mostrados, respectivamente, na Figura abaixo:
   A Tabela abaixo mostra a ativação destes músculos, medida por eletromiografia, durante a pedalada utilizando pedais (Pedals), clipes com pedalada somente empurrada (Clipless) e clipes com pedalada puxada (Clipless feedback) (MORNIEUX et al., 2008), nas quais a ativação desses músculos pode ser notada pelo aumento da atividade em cada tipo de pedalada:
Músculos envolvidos principalmente no ato de empurrar para a pedalada circundados em vermelho e no ato de puxar os pedais, circundados em amarelo.

   Os músculos mais envolvidos com o ato de empurrar os pedais possuem as Eficiências brutas maiores do que os músculos envolvidos com a puxada. Isso é sugerido até pelos seus tamanhos. Ou seja, quando recrutamos os músculos responsáveis pela puxada dos pedais, gastamos mais energia relativa, por isso a Eficiência bruta da pedalada fica menor. No entanto, se considerarmos que em algumas situações uma potência extra pode ser requerida, pode-se concluir que a pedalada com puxada pode ser capaz de fornecer essa potência extra. Segundo palavras dos próprios autores de um dos artigos:

 "Although our results suggest that actively pulling on the pedal reduces gross efficiency during steady-state cycling, there may be situations during which an active pull is beneficial in terms of adding power to the crank (e.g., during maximal power sprinting)."
KORFF et al., 2007

   Em se tratando de ciclismo de estrada, isso pode ocorrer somente em um sprint, no entanto, em Mountain Bike acontece a todo momento; para subir uma ladeira técnica, escalar uma pedra ou barranco íngreme ou para vencer um obstáculo. Ou seja pedalar puxando o pedal quando potência extra é necessária, longe de ser um mito, pode ser uma ferramenta extremamente importante e necessária, principalmente em Mountain Bike,

Referências
KORFF, T., ROMER, L.M., MAYHEW, I., MARTIN, J.C. Effect of pedaling technique on mechanical effectiveness and efficiency in cyclists. Med Sci Sports Exerc. 39(6):991-5. 2007.
MORNIEUX, G., STAPELFELDT, B., GOLLHOFER, A., BELLI, A. Effects of pedal type and pull-up action during cycling. Int J Sports Med. 29(10):817-22. 2008.
MORNIEUX, G., GOLLHOFER, A., STAPELFELDT, B. Muscle coordination while pulling up
during cycling. Int J Sports Med. 31(12):843-6. 2010.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Quando Roubar um Banco

    Os autores dos sucessos de vendas e crítica Freakonomics e Superfreakonomics, Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner estão lançando o terceiro livro da série: When To Rob a Bank. O livro será lançado em 5 de maio e já está em pré-venda pela Amazon. Eu, por via das dúvidas, já garanti o meu.



   Ansioso para conferir se a dupla conseguiu manter o padrão dos dois primeiros livros da série.

sábado, 28 de março de 2015

Nós não viemos do macaco!

    Evolução é a mudança ocorrida nas características hereditárias dos seres vivos de geração em geração, responsável pela diversidade biológica e pela origem das espécies. Segundo a Teoria postulada por Charles Darwin em 1859 e publicada em A Origem as Espécies, todas as formas de vida do planeta teriam evoluído a partir de um único ancestral comum que teria vivido cerca de 3,5 a 4 bilhões de anos atrás.
    Quando se fala em Evolução, tenho ouvido algumas pessoas cometerem dois erros fundamentais: 1. Evolução é apenas uma teoria; e 2. Nós descendemos dos macacos. Resolvi então, nessa postagem, tentar explicar essas questões.
    Tem se tornado algo comum pessoas esclarecidas afirmarem que a Evolução é apenas uma teoria, o que deixaria margem para não ser verdadeira. Essa afirmação vem do desconhecimento científico e da desinformação. Na linguagem vulgar, teoria dá a conotação de uma opinião pessoal sem fundamentação ou, até mesmo, uma afirmação que não pode ser comprovada (“é somente uma teoria”). Em Ciência o termo Teoria tem outra conotação: uma explicação bem embasada e referenciada para algum fenômeno. Exemplificamos com a Teoria da Relatividade, a Teoria da Gravidade e a Teoria do Big-Bang. Assim é a Evolução, uma Teoria cujas evidências continuam se acumulando e sendo testadas nos mais diversos campos da Ciência. Uma Teoria que explica um fenômeno da natureza, a Evolução.
    O principal argumento das pessoas que me afirmam isso está – dizem elas – na inexistência do tão afamado “elo perdido”; outro fruto do desconhecimento científico. O que o vulgo chama de “elo perdido” trata-se de fósseis transacionais ou intermediários; registros fósseis de organismos que possuem concomitantemente características de um grupo ancestral e de um grupo descendente.     Diversos exemplos de fósseis transacionais foram descobertos e publicados para as mais diversas espécies. Entre elas: Tiktaalik roseae (1), um peixe com característica tetrápode (quatro pés) que teria sido a ligação entre vertebrados aquáticos e terrestres; ou o Archaeopteryx (2), um pássaro primitivo com diversas características dos répteis, que fechou de vez a Teoria de que os pássaros evoluíram a partir dos dinossauros.


Reconstituição do Tiktaalik roseae a partir de registros fósseis.

Reconstituição do Archaeopteryx a partir de registros fósseis.

    Ok, muitas dessas pessoas poderiam argumentar que em seres humanos não há nada evidenciado e que não há “elo perdido”. Mesmo considerando que o Homo sapiens é apenas uma das centenas de milhares de espécies no planeta e que a necessidade de haver um “elo perdido” para a evolução humana é apenas uma visão antropocentrista, esse pensamento ainda é fruto do desconhecimento. Em 1891, foi encontrado um esqueleto, em Java, com características de primatas ancestrais, como um molar maior do que qualquer dente de hominídio moderno, mas com o fêmur alongado e inserção pélvica sugerindo a postura ereta. Esse organismo foi denominado Pithecanthropus erectus (homem-macaco ereto)(3). Após este, vários outros fósseis transacionais foram encontrados ligando características do gênero Homo, ao qual nós pertencemos, ao gênero Pan, ocupado pelos chimpanzés e bonobos. Um dos mais famosos Fósseis Transacionais é Lucy, um esqueleto 40% preservado de Australopithecus afarensis, um ancestral entre o Homo bípede e nossos antepassados quadrúpedes, como o chimpanzé e o gorila (4). Mas o registro mais contundente de Fóssil Transacional entre humanos e os antigos primatas foi publicado em 2004 na revista Science: o Pierolapithecus catalaunicus, apresentando características de macacos, presentes nos grandes primatas (apes) mas com uma estrutura corporal que permitia a postura ereta (5).

Lucy. Reconstituição do Australopithecus afarensis, a partir de registros fósseis.

    Como visto, não temos simplesmente O Elo Perdido mas uma série de elos perdidos; diversos registros fósseis de transição que mostram características dos antigos primatas, presentes nos chimpanzés, bonobos, orangotangos e gorilas, em conjunto com características humanas modernas, como a postura ereta.
As afirmações acima nos remetem ao segundo erro: segundo a evolução, nós não descendemos dos macacos. Isso é um erro conceitual grave. Homens e macacos, assim como todas as espécies que existem – até as bactérias – são organismos modernos que sobreviveram a milênios de evolução sobre seus ancestrais. Homens e chimpanzés possuem ancestrais comuns. Esses ancestrais comuns – genericamente chamados de LUCA (Last Unknown Common Ancestral) seriam espécies extintas que foram sucedidos por uma linha evolutiva, devido à Seleção Natural, até nós ou até os chimpanzés.
Então quando seu amiguinho perguntar por que o macaco do zoológico não evolui para homem, você pode responder: “Ele evolui sim mas não para homem. Na verdade, ele está evoluindo. Se você quiser esperar, em uma ou duas milhões de gerações, ele deverá se tornar uma versão evoluída de um chimpanzé, talvez até inteligente, mas nunca será um homem”.
    Os artigos da paleontologia modernos nem tentam mais comprovar a Evolução nos dias de hoje. Tantas evidências comprovam tão claramente as Teorias de Darwin que diversos achados e outras teorias se embasam nela para justificar, explicar e desenvolver seus resultados. Ciências sociais, geológicas, climatológicas, genéticas e diversas outras áreas comprovam a Evolução como um fato e utilizam seus postulados. Se algo equivocado ou errado existisse na Teoria da Evolução, algum desses achados mostrariam-se em desacordo com a mesma.
    Uma revisão muito interessante publicada na revista Seminars in Cell & Developmental Biology traça um perfil filogenético de diversas espécies de hominínios baseados na morfologia dos crânios (6) e ajuda a entender melhor as questões relacionadas aos dois erros comuns que mencionei:

    Árvore filogenética calculada a partir da comparação anatômica de crânios encontrados em fósseis. A posição de cada crânio no eixo Y indica sua forma craniana (tamanho da face/tamanho da caixa encefálica). O número acima de cada crânio indica o volume endocraniano (volume interno da caixa craniana). Os números em cada galho da árvore filogenética (Painel de baixo) indicam a data estimada da divergência evolutiva entre as espécies. (P. paniscus = bonobo; P. troglodytes = chimpanzé)

    A Figura acima mostra a comparação dos crânios achados em fósseis de hominínios de diversas eras. Sua relação evolutiva é mostrada em uma árvore filogenética calculada a partir destas comparações. Os números nos nós da árvore indicam o tempo decorrido desde a divergência entre as espécies mostradas nos galhos, ou seja, a época provável em que viveu seu ancestral comum. Esse esquema é bem ilustrativo para demonstrar a correção do erro 2, do qual falei. Pan Troglodites (chimpanzé) não é um ancestral de Homo sapiens (nós), nem vai evoluir até Homo porque, para isso, precisaria involuir 7 milhões de anos até o nosso ancestral comum e depois evoluir novamente por mais 7 milhões de anos até nós. Algo,  sim,  impossível.

REFERÊNCIAS
1.       EDWARD, B. DAESCHLER, N. H. SHUBIN AND FARISH A. JENKINS, JR (2006). "A Devonian tetrapod-like fish and the evolution of the tetrapod body plan". Nature 440, 7085:757–763. PMID 16598249.
2.       GODEFROIT, P.; CAU, A.; HU, D.; ESCUILLIÉ, F.; WU, W.; DYKE, G. (2013). "A Jurassic avialan dinosaur from China resolves the early phylogenetic history of birds". Nature 498, 7454:359–362. PMID 23719374
3.       ANTON, S. C. (2003) “Natural History of Homo erectus” Yearbook Of Physical Anthropology 46:126–170. PMID: 14666536
4.       WHITE, T.D. , SUWA, G., SIMPSON, S., ASFAW, B. (2000). "Jaws and teeth of Australopithecus afarensis from Maka, Middle Awash, Ethiopia". American Journal of Physical Anthropology 111 (1: 45–68. PMID 10618588.
5.       MOYA-SOLA, S., KOHLER, M., ALBA, D. M. CASANOVAS-VILAR, I., GALINDO, J. (2004) “Pierolapithecus catalaunicus, a New Middle Miocene Great Ape from Spain”. Science 306, 1339-1344. PMID: 15550663.
6.       Zollikofer, C. P. E., León, M. S. P. (2010) The evolution of hominin ontogenies. Seminars in Cell & Developmental Biology, 21:441–452. PMID: 19900572.


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O fantasma do glúten. Ou do "gluten-free".

Temos visto diversas celebridades se vangloriando de ter uma alimentação livre de glúten. Pessoas dizendo que glúten é tão perigoso que o escrito "contém glúten" deve vir escrito em todos os alimentos. Um texto hospedados no site do Senado Federal chega ao absurdo:

...o glúten transforma-se em uma espécie de cola grudando nas paredes intestinais. Com o passar do tempo, provoca saturação do aparelho digestivo, aumento da gordura na região do abdome, dores articulares, alergias cutâneas e depressão.

Absurdo!

Glúten é um constituinte do trigo formado principalmente por proteínas. Pode ser obtido pela lavagem da farinha para retirada do amido. Além de proteínas, o glúten contém amido e cerca de 10% de lipídios.

Algumas pessoas - cerca de 1% da população nos E.U.A.N. - desenvolvem uma alergia à porção protéica de glúten que leva à inflamação da mucosa intestinal, resultando em má absorção de nutrientes e uma série de sintomas intestinais conhecidos como Doença Celíaca (coeliac disease). Esta condição é grave e os portadores devem ser alertados quanto à presença de glúten nos alimentos industrializados. Daí o aviso nas embalagens.

O problema reside num modismo recente que, por conta da doença celíaca, trata o glúten como veneno. Pessoas que não são portadoras desta doença fazem dietas gluten-free baseadas somente em opiniões equivocadas ou mal intencionadas divulgadas principalmente pela internet. Não há evidências de que pessoas que não sejam portadoras de doença celíaca apresentem qualquer problema ao ingerirem glúten.

Caminero e colaboradores (Europian Journal of Nutrition, 2011) mostram que, pelo contrário, quanto mais glúten as pessoas ingerem maior é a produção de uma enzima responsável pela digestão desse glúten por bactérias da microbiota intestinal normal dessas pessoas. Essa enzima, a glutinase tem maior atividade quanto maior for a ingesta de glúten, indicando que nossa microbiota intestinal tem condições de lidar normalmente com o glúten ingerido, mesmo em quantidades muito maiores do que as normalmente consumidas por um indivíduo normal.

Na verdade, toda proteína ingerida pelo homem é digerida incompletamente e acaba sendo liberada nas fezes, inclusive a tão bem tolerada, clara de ovo.

Existe, sim, problema no modismo do gluten-free. Katy Steinmetz (2011) refere um alerta feito por pesquisadores e médicos norte-americanos pela revista Time - sim, a Time é indexada pelo PubMed - em relação ao modismo do gluten-free. Segundo eles, a maioria das pessoas que fazem uma dieta gluten-free não são portadores de doença celíaca e o selo "gluten-free" tem se tornado uma fonte de lucro das indústrias alimentícias. Segundo o autor, por se tratar de um modismo, o selo "gluten-free" tem sido usado inapropriadamente como estratégia de venda. Ele cita um caso onde um fabricante imprimiu o aviso "gluten-free" em seu pão feito com trigo e causou a morte de diversas pessoas que eram realmente portadoras de doença celíaca, sendo condenado a 11 anos de prisão.

Enfim, não há indícios que possam embasar uma dieta livre de glúten por pessoas não portadoras de doença celíaca. Pelo contrário, o modismo ignorante pode vir até a causar prejuízos para quem realmente sofre desta grave condição.

Referências:

Caminero e cols. 2011. Eur J Nutr. no prelo. http://dx.doi.org/10.1007/s00394-011-0214-3

Steinmetz K. 2011. Time. 177(21):64.

sábado, 30 de julho de 2011

Serotonina e a alegria do verão.

Em uma postagem anterior, mostrei alguns dados históricos de temperaturas máximas e mínimas no Rio de Janeiro e em Salvador. Nos comentários, uma amiga sugeriu que eu buscasse alguma correlação entre o humor das pessoas em locais e estações mais ensolaradas. Pois bem.

Existem trabalhos demonstrando que o humor das pessoas muda durante o ano em função da luminosidade. As pessoas se sentem mais felizes durantes as épocas mais ensolaradas do ano. Variações de humor já foram associadas a secreção do hormônio serotonina. Vários trabalhos demonstram uma correlação relativamente forte entre os níveis cerebrais de serotonina e a luminosidade média da estação, assim como melhora de humor nos dias mais ensolarados. Abaixo um gráfico de um artigo que, embora antigo, é um clássico da literatura na área:


Como mostrado no gráfico, os níveis de serotonina medidos em 18 indivíduos é significativamente maior nos meses de verão em relação aos de inverno.

Selecionei o artigo que segue, onde é mostrado a possível razão deste aumento sazonal de serotonina. Os autores mediram os níveis de uma proteína neuronal responsável pela retirada de serotonina das sinapses neuronais. As sinapses são as conexões químicas entre os neurônios e é a forma como eles se comunicam e passam adiante as informações que recebem. Quanto mais serotonina nas sinapses, mais sinais de "felicidade" são transmitidos entre os neurônios. Uma proteína chamada de Transportador de Serotonina é a responsável por esta retirada, levando a serotonina para sua destruição metabólica.

Pois bem, o gráfico abaixo mostra uma correlação entre os níveis deste Transportador de Serotonina e a luminosidade média dos meses em que a medida foi feita em várias regiões do cérebro de 88 indivíduos saudáveis:



Como visto, nos meses onde há picos de luminosidade, representada pelo sombreado cinza - junho, julho e agosto - que coincidem com o verão em Toronto, onde o estudo foi feito, há também um decréscimo da produção do Transportador de Serotonina - representado pelas bolas com barras de erro - o que faz com que mais serotonina fique disponível nas sinapses neuronais. Desta forma, as alterações de humor relacionadas com a luminosidade e consequentemente com as estações do ano são devidas as alterações nas quantidades de serotonina disponíveis e, mais ainda, a diminuição da proteína neuronal responsável pela retirada de serotonina das sinapses.

Não encontrei trabalhos relacionando os níveis de serotonina em indivíduos que vivem em regiões mais ensolaradas em comparação com que os que vivem em regiões mais escuras mas a partir desses resultados, podemos tirar certas conclusões.

Referências:

Sarrias MJ, Artigas F, Martinez E, Gelpi E. Seasonal changes of plasma serotonin and related parameters: correlation with environmental measures. Biol Psychiatry. 1989;26(7):695-706.

Praschak-Rieder N, Willeit M, Wilson AA, Houle S, Meyer JH. Seasonal Variation in Human Brain Serotonin Transporter Binding. Arch Gen Psychiatry. 2008;65(9):1072-1078


sexta-feira, 3 de junho de 2011

Telefone celulares, radiação eletromagnética e risco de câncer.

Saiu recentemente um artigo na Folha On line, copiando o jornal inglês The Daily Telegraph que uma pesquisa supervisionada pela O.M.S. teria relacionado o uso de celulares com diversos tipos de câncer. A pesquisa teria sido conduzida pela professora Elisabeth Cardis, do Centro de Pesquisa em Epidemiologia Ambiental (Creal) de Barcelona. É preciso notar que o The Daily Telegraph não é um periódico científico mas sim um tablóide. Errou a Folha ao dizer que os dados preliminares foram publicados neste jornal, já que não é um veículo de publicação de resultados mas sim de divulgação de artigos publicados em periódicos científicos.

O artigo original se trata de um editorial e não uma revisão e foi publicado na revista Occupational and Environmental Medicine.

Radiação eletromagnética em alta intensidade gera aquecimento. Esta técnica é, inclusive, utilizada em tratamentos médicos. O efeito termogênico das radiações eletromagnéticas é conhecido e deletério para a saúde, no entanto, a intensidade de radiação para gerar calor é muito - mas muito mesmo - maior que as emitidas por aparelhos telefônicos sem fio, celulares e redes wireless.

Fazendo uma busca na literatura científica, encontrei diversos artigos estudando o assunto. Foram tantos que selecionei algumas revisões, que analisam esses artigos e emitem uma conclusão científica mais completa do estado da arte. Um deles (Hours et al, 2007) é coordenado pela própria Profa. Cardis. Seguem abaixo alguns trecho para que os leitores mesmos tirem as conclusões. Seguem os links para cada artigo:

"Many of the positive studies may well be due to thermal exposures, but a few studies suggest that biological effects can be seen at low levels of exposure. Overall, however, the evidence for low-level genotoxic effects is very weak." Verschaeve et al., 2010.

"In conclusion, no co-genotoxic effect of radiofrequency was found at levels of exposure that did not induce heating." Perrin et al., 2010.

"...there is only weak evidence for a relationship between RFE and any endpoint studied (related to the topics above), thus providing at present no sufficient foundation for establishing RFE as a health hazard" Jauchem, 2008.

"No significant increased risk for glioma, meningioma or neuroma was observed among cell phone users participating in Interphone." Hours et al., 2007.

Antes de criar qualquer tipo de alarde, eu prefiro esperar resultados mais confiáveis.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Faz calor no Rio, faz calor em Salvador. E frio?

Caros.

Faz tempo que não posto nada e o motivo é o mesmo pelo qual padece a maioria dos meus leitores - falta total e absoluta de tempo. Por isso, já me sinto desculpado. Aproveitei que uma virose me deixou em casa deitado para sanar uma pequena pendenga que tive com uns amigos. Em visita a Salvador e/ou morando aqui depois de viverem no Rio de Janeiro - como eu mesmo, aliás - me disseram que passavam mais calor aqui do que no Rio. Achei muito estranho pois, além da minha própria experiência, vários outros amigos, parentes e conhecidos me diziam que o calor aqui era menos acachapante do que lá. Bem, como resolver essa questão?

Claro que recorri aos dados disponíveis. Fui direto ao site do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE, onde a base de dados do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos - CPTEC estão disponíveis de maneira organizada e completa. A primeira conclusão que cheguei foi: não estão. O site parece ser funcional mas tive que fazer um cadastro para acessar os dados, a página de dados não reconheceu meu cadastro depois de várias tentativas e depois de muito custo consegui ter acesso aos dados mas não de maneira automatizada. Além disso, a base histórica é extremamente desatualizada e incompleta. Neste ponto, pelo menos o INPE tem muito o que aprender com o IBGE. De qualquer forma, consegui extrair dados históricos de temperaturas mensais máximas e mínimas das duas capitais entre 2006 e 2008. Mas do que isso seria impossível com as restrições apresentadas. Por isso, não pude fazer nenhuma análise estatística mas os resultados que obtive foram representativos da minha experiência e de meus amigos .

O gráfico abaixo mostra as temperaturas máximas registradas em cada mês indicado. Acho que o gráfico é auto-explicativo:


Como sugerido por nossa experiência - e de outros- os verões cariocas são realmente mais quentes. Acrescento que não devem estar incluídas nesses registros as marcas de Bangu, onde relatos diversos já informaram temperaturas de até 46oC. Mas Bangu é um mundo a parte, vamos combinar...

O que ocorre no Rio, diferentemente de Salvador, é que lá há inverno. Os paulistas e gaúchos de plantão podem torcer o nariz mas os 14oC do Rio é frio sim pra nós, ponto. O gráfico abaixo mostra as temperaturas mínimas registradas nas duas cidades durante o mesmo período:


Conforme mostrado, Salvador não tem inverno - pelo menos não faz frio - e isso dá a sensação de que é muito quente. É quente mas menos quente que o Rio. A diferença é que no Rio tem inverno, enquanto em Salvador o inverno é chuva e Sol, chuva e calor no mesmo dia, muitas vezes ao mesmo tempo.

Enquanto isso, ficamos aqui, sem passar tanto calor mas com uma saudade da escapadinha pra Serra das Araras...

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Pizza: integral, antioxidante e em 2 minutos e 10 segundos

 Como amante, consumidor e estudioso do preparo de pizza, trouxe um artigo muito interessante para quem procura mais que benefícios gastronômicos destas delícias. JEFFREY MOORE e seus colaboradores da University of Maryland trazem no seu estudo algumas informações interessantes a respeito dos teores de antioxidantes na pizza feita com massa integral em relação ao tempo de fermentação e temperatura de cozimento. Os autores mediram os níveis de sequestradores de radicais hidroxilas (HOSC), capacidade de absorção de radicais de oxigênio (ORAC), capacidade relativa de sequestrar radicais 2,2-difenil-1-picrilhidrazil livres (DPPH), fenois totais e ácido ferúlico total. Todos índices característicos de potencial antioxidante em alimentos. O autor discute, baseado em referências, que o aumento de antioxidantes nos alimentos a base de trigo integral estão ligados a diminuição dos riscos de desenvolvimento de câncer e doenças cardiovasculares.

 A figura abaixo mostra o aumento dos níveis de antioxidantes relacionado ao tempo de fermentação da massa, sendo um tempo longos (48 horas) mais adequados para esta característica.

 

 Mais interessante ainda é o efeito da temperatura de cozimento da pizza. Aumento da temperatura do forno de 204oC para 288oC causa um aumento nos níveis de antioxidantes da massa integral. Embora o autor não tenha testado temperaturas mais altas, parece que quanto mais quente melhor.


 Citando o blog do meu amigo Jeff Verasano, especialista no preparo desta iguaria da culinária italiana, a temperatura ideal do forno para preparo de pizza está acima dos 280oC, onde a massa demora entre 5 e 7 minutos para ficar pronta, sendo ideal o preparo a 440oC, onde a pizza leva extraordinários 2 minutos e 10 segundos para ficar neste ponto.

Levando em conta estas informações - científica e gastronômica - revelamos um dos segredos da longevidade mediterrânea. Se acrescentarmos azeite de oliva e vinho à receita, está aí o segredo.

Bom apetite e vida longa!

Referência:

Moore et al., J. Agric. Food Chem. 2009, 57, 832–839


quarta-feira, 28 de julho de 2010

"Pinguçogenética"

 Alcoolismo é uma desordem comportamental que envolve interações complexas entre diferentes genes e entre genes e ambiente. Entre estas interações, há um exemplo claro, a produção e funcionamento das enzimas responsáveis pela metabolização do álcool no homem.

 O álcool é principalmente metabolizado no fígado por três sistemas. Entre eles, as enzimas álcool desidrogenase (ADH) e aldeído desidrogenase (ALDH) formam o sistema mais eficiente de metabolização de etanol em condições subtóxicas, ou seja, consumo leve a moderado. Este sistema converte o álcool etílico (etanol) em acetato em dois passos executados por estas enzimas hepáticas. São eles:


 A produção desses NADHs é uma das principais responsáveis pelo efeito tóxico do etanol, entre eles a hipoglicemia que leva ao coma alcoólico e à esteatose hepática (fígado gordo) que leva à cirrose mas isso será tratado em outra ocasião.

 O que quero tratar aqui e da variação genética dessas duas enzimas apresentada em populações humanas. Existem vários subtipos dessas enzimas, o que chamamos de polimorfismo. Genes diferentes produzem enzimas ligeiramente diferentes mas que podem funcionar de maneira sensivelmente distintas. Por exemplo, sete subtipos de ADH são produzidos por humanos, entre elas duas são as principais, ADH1B1 e ADH1B2, assim como a ALDH também é produzida em duas formas, ALDH2.1 e ALDH2.2. Para simplificar, vamos chamar de ADH1 e ADH2 e de ALDH1 e ALDH2, respectivamente. A ADH1 é cerca de 5 vezes mais eficiente que a ADH2, enquanto que a ALDH1 é quase 1000 vezes mais eficiente que a ALDH2. Essas diferenças são mostradas no parâmetro de eficiência enzimática (Vmax/Km) na tabela abaixo:



 Diversos artigos mostram que pessoas que produzem os tipos 2 dessas enzimas (ADH2 e ALDH2) tem uma espécie de proteção contra o desenvolvimento de alcoolismo desde que a chances destas pessoas se tornarem alcoólatras é significantemente menor. Isto pode ser verificado na tabela abaixo que mostra a razão de chances (odds ratio) do desenvolvimento de alcoolismo em pessoas que possuem as diferentes combinações dos genes de ADH1 e 2, e ALDH1 e 2.


 Reparem que o grupo de referência é aquele que possui os dois alelos (genes) ADH1 e ALDH1. Este grupo possui o odds ratio de 1 comparado com os outros. O grupo com a menor chance de alcoolismo é aquele que possui os dois alelos ADH2 e ALDH2 (odds ratio = 0,01). Conforme os alelos dos dois genes do tipo 2 aparecem, aumentam as chances de alcoolismo, sendo que 3 do tipo 1 e um do tipo 2 (ADH1B1/1 e ALDH2.1/2) é o mais alto (0,40).

 Resumindo, quanto mais eficiente o sistema de metabolização de etanol, maior a chance de alcoolismo. O autor sugere que o acúmulo de acetaldeído, que é tóxico, pode ser a chave deste efeito já que as combinações onde a ADH é muito eficiente (produz muito acetaldeído) e a ALDH e pouco eficiente (consome pouco acetaldeído) não foram encontradas na população de alcoólatras.

 De qualquer forma, parece que quanto mais mal o álcool fizer pro sujeito, menos a chance dele virar alcoólatra. Logo, se você acorda bem depois daquela noitada regada a muita cerveja, uisque, vodca, tequila e cachaça, preocupe-se, você pode ser do grupo 1/1. Ou seja, geneticamente determinado a ser um pinguço.

Referências:

Santos, et al. Alcohol 14, 1997, 3:205-207;

Chen, et al. Chemico-Biological Interactions, 2009, 178:2–7.